DA ALEGORIA À TOMADA DA CIDADE

Para muitos de nós as marchas populares de Lisboa não são mais do que um rectângulo televisivo. Também o foram para mim durante muitos anos. Um mero rectângulo onde se situava toda uma alegoria, uma representação vazia de outros tempos e, sim, os tempos a que me ensinaram a nunca mais voltar.

De algum modo essa alegoria ainda existe. Extactamente no mesmo rectângulo, que dita as modas e faz com que marchantes tenham de desfilar para uma tribuna institucional, talvez mais desinteressada no fenómeno e mais na aparição, quando na bancada oposta, assistem virados para as costas, os aficionados.

Talvez esse rectângulo seja o acordo de paz entre o formato idealizado por Leitão de Barros para o Estado Novo na década de trinta do século XX e a contemporaneidade, que permite a sua sobrevivência.

O rectângulo não ouve a euforia das gentes ao longo de toda a Avenida, não assistiu aos milhares de pessoas que acompanharam as marchas na volta a cada bairro – na saída prévia para a Avenida; não foi a ensaios gerais, não esteve num Pavilhão lotado de Lisboetas e não acompanhou centenas de marchantes e organizações num labor diário durante meses.

Provavelmente o público em geral nem se dá conta dos gritos de ajuda, das histórias do quotidiano e da vivência das suas gentes presentes em cada marcha e imaginando para lá dos temas oficiais.

É que as marchas, enquanto fenómeno, são exactamente o oposto do que ficou siderado em todos a partir do modelo instituído no Estado Novo, de a cidade ser um conjunto de aldeias. Essa é a versão domesticada.

Esse lugar na cidade vem antes demais da vontade popular em homenagear Santo António ao invés das atenções dadas a São Vicente, o padroeiro original, mais ligado às elites e ainda hoje o padroeiro do Patriarcado de Lisboa.

Atravessando o século XVIII e XIX, as noites de Santo António eram feitas de cortejos nocturnos, da população pobre e de várias origens que com os seus instrumentos, disfarces e enfeites; percorriam os bairros da cidade até à sua parte baixa, preterindo o Terreiro do Paço em favor de praças mais do seu agrado: da Figueira e Rossio onde se acendiam fogueiras.

Excessos de tomada do espaço público por parte do povo, sempre do desagrado das elites e com devida repressão.

Era comum os jornais relatarem os feitos policiais dessa noite. Das fogueiras que não foram ateadas. Ainda no fim da monarquia, esse movimento foi proibido e, no auge da República fechava-se a Praça da Figueira nas noites de Junho.

Aquilo que a vida fez-me aprender nos últimos vinte anos junto das gentes do Alto Pina, é que as marchas são todo um movimento de existência, logo, uma síndrome do esquecimento a que as pessoas mais pobres da cidade são votadas todos os dias.

Apesar do Alto Pina ser um bairro reconhecido na cidade, os marchantes da marcha provêm das vilas operárias em redor da Barão de Sabrosa e, fundamentalmente, dos moradores dos antigos Bairros da Quinta da Curraleira, Quinta do Coxo e Quinta do Bacalhau. Ou seja, uma autêntica subida da terra batida para o asfalto simplesmente para existir. Talvez também, o único espaço narrativo oficial onde os ciganos existem na cidade, com o temas deste ano e de tantos outros anos da marcha.

É essa vontade de existir que caracteriza a marcha do Alto Pina. Boa ou má, tem a garra desse desejo e faz sempre mexer as bancadas.

Publicado na Mensagem de Lisboa a 15 de Junho de 2023

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