POBREZA, RUA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL

As últimas semanas têm sido pródigas em discussões sobre pobreza, modos de vida, sobrevivência e contestação. Ainda assim, muitas dessas narrativas aparecem desagregadas e aparentam um atropelo entre determinadas profissões, classes sociais e património do sofrimento. Uma espécie de tentativa de ganhar a guerra da atenção, em que até a contestação deixa de ser unitária e cai na armadilha da competitividade entre si, sem dúvida uma consequência da hegemonia e cultura económica em que vivemos.

O que vivemos agora é consequência de vários ajustes económicos a nível global – a crise do subprime e troika, pandemia de Covid – 19 e agora o conflicto na Europa – para não ir mais longe; reforçada por política nacionais. Do que sabemos, o mundo ficou sempre mais desigual a seguir a cada uma dessas crises e consequentes medidas de austeridade.

Em Portugal, o retrato da pobreza é muitas vezes uma frente académica, pouco absorvida por quem tem o desígnio de assumir responsabilidades políticas sobre ela.

Segundo o INE, somos um país com mais de dois milhões de pessoas em risco de pobreza (16,4%). Se descontarmos as transferências sociais o valor sobe para 43,3% (37% em 1994). Isso quer dizer que quase metade da população vive num certo limiar de fragilidade e, desenganem-se os populistas, ninguém gosta de estar nesse limbo.

Perante os números, pode dizer-se que Portugal é um país que mantém um contingente populacional estruturalmente em risco, com condições de vida precária ou perto de disso.

Perante o panorama, a subida generalizada dos preços, foi o sismo que faltava para pôr em causa o frágil contrato social da sociedade portuguesa.

Diz-se que a inflação atinge as famílias de diferentes formas, mas o que significa isso?

Na nota intercalar do “Portugal, Balanço Social 2022” da SBE Nova podemos encontrar algumas dessas respostas. 20% dos indivíduos mais pobres têm uma despesa superior ao rendimento. Os produtos alimentares têm um peso de 19,2% na despesa das famílias mais pobres e de 11% nas mais ricas. Quanto às rendas, o peso no orçamento das famílias mais pobres é 6,9 vezes superior ao das famílias ricas. As despesas de saúde, gás e electricidade, gasolina/gasóleo e de transportes públicos é também superior nas famílias mais pobres.

Claramente, o perfil de despesa das famílias mais pobres centra-se nos consumos essenciais, e o que têm vivido essas famílias nos últimos tempos? – aumentos recordes nas rendas da habitação, subidas das taxas de juro e correspondente aumento na prestação do crédito à habitação, aumento dos preços das gasolinas, aumentos nas comunicações, aumento do número de sem abrigos, lisboetas a morrer em casas sobrelotadas e aumento de preço dos bens alimentares essenciais (segundo a Deco um cabaz de alimentos essenciais aumentou 24,52% de 2022 para 2023).

O que essas famílias não vivem, mas veem são os lucros recorde das empresas de energia, dos bancos, retalho, e até o estado tem superavit.

Ou seja, há um testemunho colectivo de que uma certa riqueza existe, está é mal distribuída.

O desespero instala-se. Segundo o estudo já citado da SBE Nova, a correlação entre o aumento do salário mínimo e a redução de taxa de pobreza no trabalho é baixa. Pior, segundo a OCDE num estudo de 2019, em Portugal são precisos 125 anos para uma família sair da pobreza. Há uma imobilidade total na sociedade portuguesa, o que põe em casa os direitos e garantias da Constituição da República Portuguesa.

Durante muitas décadas, o sistema político e as políticas públicas, enfrentou as questões da pobreza e população afecta com um olhar de vanguarda, paternalista, habituado que está a um situacionismo institucional. Os sinais de alarme dessa estrutura conservadora já são por mais evidentes: aumento da abstenção, anomia social, populismo, consanguinidade nos cargos públicos, desconfiança generalizada.

Depois, acrescente-se, há uma reacção defensiva ao aparecimento de novos actores. São logo apelidados de movimentos inorgânicos. Essa atribuição resulta fundamentalmente da distância entre quem pode intervir na esfera pública neste país e a realidade vivida. Quem está na base da pirâmide económica do país tem laços afectivos e redes de solidariedade desconhecidas do grande público, mas completamente orgânicas para os seus constituintes.

Por isso devemos ter renovada esperança quando surgem movimentos de base como o Vida Justa, disponíveis para vir a público – como no próximo dia 25 de Fevereiro, para refrescarem o jogo de actores que tece as decisões colectivas. Não estamos habituados que a base da pirâmide venha a público, num país onde até a representação social é um privilégio. Esperemos que isso mude em breve.

Publicado em o Público a 23 de Fevereiro de 2023

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