
Nos dois primeiros dias de Janeiro, fomos confrontados com duas notícias de ampla difusão em Portugal. A partir de dia 1, o Canadá implementou a proibição de aquisição de habitações no seu país a estrangeiros não residentes e Marina Gonçalves é nomeada ministra da habitação.
A verdade é que a decisão do executivo de Justin Trudeau já estava prevista e assenta num plano mais elaborado do que o mero anúncio a que na generalidade tivemos acesso. Para o primeiro-ministro, todos os canadianos e imigrantes devem ter direito a uma habitação acessível e isso simplesmente deixou de acontecer. Para o ministro da habitação, Ahmed Hussen, a proibição pretende evitar que os compradores usem a habitação como mercadoria, mas sim como um local para viver.
À referida proibição, junta-se a criação de um primeiro imposto na história do Canadá aos proprietários estrangeiros não-residentes que detenham: casas vazias, em sub uso e terrenos urbanos vazios. Está-se a criar uma agência federal para investigar a lavagem de dinheiro no mercado de habitação e a prevenir os lucros excessivos através de uma taxação aos fundos de investimento.
Estas medidas de regulamentação do mercado são complementadas por outras que respeitam a apoios directos às famílias, jovens, mulheres vítimas de violência doméstica, estudantes, populações indígenas; e o incentivo à construção de mais habitação.
Não pretendo com esta exposição assinar em branco as políticas de habitação do governo federal do Canadá, mas talvez ajudar a compreender a recepção e divulgação das mesmas em Portugal.
É que o governo do Canadá de Justin Trudeau é liderado pelo Partido Liberal, que corresponde ao mesmo lugar do espectro político que o Partido Socialista em Portugal: ambos são supostamente os grandes partidos do centro-esquerda dos seus países (embora com origens distintas).
Talvez resida aí o argumento que levou a tantas partilhas sobre as últimas medidas do governo de Trudeau. Infelizmente, habituámo-nos a que todo o arco governativo andasse de braço dado com políticas de fomento à especulação no sector do imobiliário. A quebra desses laços, a partir de precursores do liberalismo, deu alguma esperança, nem que seja meramente argumentativa.
Já a criação do primeiro ministério exclusivo da habitação em Portugal não parece vir a prometer esperanças, nem argumentativas. Do que conhecemos do programa de governo e das declarações da ministra Marina Gonçalves, não se esperam medidas robustas que melhorem os acessos à habitação para quem vive no país. Executar o PRR da habitação é insuficiente.
Este mês foi pródigo no levantamento de situações concretas no que respeita aos acessos à habitação. O humorista Diogo Faro, fez um vox populi através das suas redes sociais e o resultado é o que já sabíamos: médicos, engenheiros e enfermeiros não conseguem competir com reformados estrangeiros ou nómadas digitais para as mesmas habitações em Lisboa, agora imagine-se o resto da população portuguesa cujos rendimentos são menores que dos exemplos citados.
É preciso lembrar que a habitação é de longe a maior despesa das famílias, representando sensivelmente um terço do total. Intervenções marginais ao sector: aumento de ordenados, ajudas ocasionais em numerário, redução de impostos dos combustíveis; apesar de justas, nunca vão compensar os aumentos sentidos no arrendamento ou nas prestações mensais da habitação. É neste sector que se faz sentir o principal entrave à qualidade de vida, e é nele que se deve intervir estruturalmente.
O governo anterior quis notabilizar-se pela revogação das medidas impostas pela troika executadas por Pedro Passos Coelho, mas o sector da habitação ficou de fora desse movimento.
E no meio de tanta desinformação, como é que chegamos aqui?
Em 2011 o governo português pediu um resgate a três instituições que em conjunto ficaram conhecidas como troika: Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu. Foram assinados dois documentos entre o estado português e o consórcio internacional: o Memorando de Políticas Económicas e Financeiras e o Memorando de Entendimento. Neste último encontramos o ponto 6: “Mercado da Habitação” também com o objectivo de “melhorar o acesso das famílias à habitação”, sim, leram bem. Mais à frente percebe-se que as alterações a realizar retiram os prazos para negociação das rendas, diminuem o controlo de rendas, impossibilitam a transmissão dos contratos a familiares directos e reforçam os despejos extrajudiciais.
Essas medidas foram corporizadas pela nova lei das rendas de Novembro de 2012, que ficou conhecida como a Lei Cristas, uma liberalização total do mercado.
Como se a nova lei não fosse suficiente, ela foi animada por uma série de iniciativas: vistos gold, regime para residentes não habituais (isenção de impostos para estrangeiros que domiciliem a sua residência em Portugal), “Reabilita Agora Paga Depois” (em Lisboa) e o visto para nómadas digitais.
Sazonalmente somos inundados com a crueza dos números que prezam estas políticas. O ano passado o SEF anunciou que em dez anos, os vistos gold captaram mais de 5 mil milhões de euros.
Esses números são-nos entregues como se contracenassem com um nada. Como se não houvesse transações imobiliárias caso os vistos gold não existissem.
Como se cidadãos estrangeiros que moram fora do território nacional não fossem investir de todo no país, e partindo do princípio de que os que já aqui residem não iriam realizar transações de imobiliário.
No fundamental, quem nos apresenta esses números: de economistas a responsáveis políticos, ignoram o valor económico de cidades coesas.
Uma cidade em que a presença de cada um de nós num dado bairro, numa determinada rua não é um pop up de apenas dois anos, mas sim um investimento a médio prazo, permite criar relações de vizinhança que conduzam a uma primeira linha de protecção dos mais vulneráveis, uma estima pelos espaços comuns e públicos, comerciantes que podem oferecer contratos estáveis e qualificados aos seus trabalhadores.
Se as famílias que habitam e trabalham em Portugal estiverem seguras face ao valor das suas prestações: de renda ou aos bancos, e menos assustadas com as suas oscilações, podem investir noutros patamares da vida colectiva.
Contando ainda que muitos dos investidores das iniciativas ao mercado de habitação não pagam impostos em Portugal, duvido muito que os biliões anunciados compensem a desagregação em curso. O ónus das políticas em vigor desde 2011, vão recair sobre os mais desfavoráveis e num estado social que se vê sobrecarregado pelo fim de diversas redes de solidariedade. E atenção, estamos só a falar do mercado de habitação, uma política de habitação é muito mais do aqui escrutinei.
Publicado em A Mensagem de Lisboa a 18 de Janeiro de 2023
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