Enquanto miúdo, não poucas vezes ouvi observar uma obra arquitectónica como “Palácio de Ceausescu”. É uma intemporalidade incontornável, a construção do palácio demorou-se por toda a minha infância: 1980-89, sendo interrompida com a queda do Presidente da Roménia. Apesar de incompleto, é ainda o maior palácio do mundo.
Como devem calcular, não andava aos seis/sete anos a consultar enciclopédias para ser naquele tempo, um perito em arquitectura palaciana contemporânea romena, ainda para mais em obra. Andava sim, nas enciclopédias a consultar e a contruir conhecimento similarmente estranho, mas não esse.
O affair chega a mim por interposta obra: a nova sede da Caixa Geral de Depósitos na Avenida João XXI em Lisboa. Construída entre 1987 e 1994, pretendia ser, segundo o Conselho de Administração da CGD de então “um marco arquitectónico, estética e urbanisticamente equilibrado”. Era aí, no confronto das pretensões e da realidade das conversas de adultos, que percebi o atributo e o significado de “Palácio de Ceausecu”.
Ambas são obras de um sistema que exacerba a sua realidade. Atribuía-se ao Presidente da Roménia a desfaçatez de um projecto desequilibrado para as necessidades do país e afirmativas do seu poder individual e, por arrasto, em Portugal, considerava-se a nova sede da CGD um “mono” desnecessário e representativo da externalidade física da governação de Cavaco Silva.
Em relação ao actual Palácio do Parlamento romeno, aos edifícios pós-terramoto do Terreiro do Paço, à sede da CGD ou ao Pentágono; poucos sabemos o nome dos arquitectos, mas quase todos sabemos o que significam.
O interessante do espaço construído: sejam edifícios, quarteirões, espaço público, urbanismo; é que nos dá uma leitura e nitidez sobre o mundo que o construiu e aquele em que vivemos.
Da profusão capitalista das últimas décadas, em democracia ou autocracia, houve uma transferência do ónus do protagonista, de quem encomenda para o encomendado: o arquitecto, inaugurando a época do star system, uma valorização individual que se tornou comum em várias disciplinas: desporto, artes, medicina; mas que adquire aspectos mais incontornáveis na arquitectura porque obriga-nos a onde vivemos, o que vemos e por onde passamos.
Esse tributo aos mestres funciona retroactivamente, porque a obra construída dura, e assim vemos alunos e aficionados a irem visitar as façanhas do agora venerado nos locais presenteados pelo início da sua carreira, quando ainda construía habitação colectiva, ou punha as pessoas em gavetas em bairros públicos.
Saem de lá muitas fotografias de betão e céu, curvas e contrastes de dotes prematuros da genialidade do autor. A ilusão ofusca, porque ninguém sai de lá a olhar para o rés do chão e a perceber minimamente como é que os seus habitantes vivem. Se por azar tal ocorrer e confrontarem-se com uma apropriação qualquer, do estendal improvisado ao jardim exótico, contamos com a foto kitch ou com a interjeição fofa, mas nunca o que muitas vezes é: a inaptidão de contruir para e com os destinatários.
Na relação entre hegemonias contemporâneas e espaço construído, um dos territórios mais reveladores dessa correlação é a Expo 98, depois apropriada urbanisticamente como Parque das Nações.
Um espaço de implementação física da imaginação de um Portugal Moderno, pronto para novas viagens; talvez menos nefastas e assassinas que as anteriores. Para seu acesso temos a Gare do Oriente do Calatrava que no alto dos seus treze mil e setenta e seis posts no # do instagram de objecto inanimado, acabou por se tornar o maior empreendimento público de acolhimento de sem abrigo, às centenas por noite.
As noites debaixo da gare são o verdadeiro retrato do país em que nos tornámos. Não solucionamos com as evidências que temos a situação dos sem abrigo, ficamos com a distopia de lhes oferecer tecto com uma infraestrura pública.
Confesso que às vezes exploro a dissociação entre objecto e vida real até ao fim. Em 2015, à distância do meu teclado, li que estava a ser construído um novo terminal de cruzeiros em Lisboa. O arquiteto prometia uma “nova tipografia da cidade entre a colina de Alfama e o Tejo” – e haveria de ser tão verdade.
Esperei pela inauguração. Entre tuc tucs, 28´s parados e selfie sticks lá cheguei à reserva visual que constituía o miradouro de Santa Luzia e deparei-me com o fim da paisagem. O fim da aspiração da relação entre cores do Bairro, céu e Tejo. Afinal, a nova tipografia da cidade e do Bairro são os cruzeiros que aparcam no terminal, uma barreira de prédios entre nós e o rio.
Setecentos mil passageiros anuais depois, triunfar como o porto mais visitado da Europa trouxe também o recorde invisível a olho nu de 3,5 vezes mais dióxido de enxofre por ano do que o conjunto de todos os automóveis que circulam na cidade (Associação Zero). Poderia ficar-me pelo alívio de não morar em Alfama, Santa Apolónia, Graça ou Beato; mas a verdadeira pergunta que deixo é: qual a necessidade disto?
Não fiquemos, no entanto, pessimistas. A Câmara Municipal de Lisboa e a Trienal de Arquitectura atribuíram à obra o maior galardão do género: o prémio Valmor. Na recepção da noticia, disse Carrilho da Graça – o Arquitecto – que colocou-se “sempre do lado da cidade”, promovendo o “diálogo entre a aquele espaço (…) e o grande anfiteatro que é Alfama a olhar para o Rio”. Se o dizem, é porque é.
No Diário de Notícias de 20 de Janeiro de 2024
Leave a comment