Naquele café, o lugar mais longe disponível virado para a porta era dela. Todos os dias, das dez às dezasseis. Ofélia, perto dos seus oitenta, acrescentava ao cativo um cesto de verga com vários tamanhos de collants de vidro. Se fosse necessário, o cesto poderia ser mera decoração – depende da intenção de quem entrasse – mas para todos nós, e ainda mais para ela, era o seu ganha-pão, para manter uma vida na reforma que não existe.
A posição no café é de quem se habituou a ser vigiada. Noutros tempos percorria as ruas de Lisboa na venda. Hoje fica só onde o corpo deixa. Em outros sítios da cidade que não naquele Bairro não conseguiríamos associar a candura e aura de avozinha de Ofélia a estadas na prisão das Mónicas nos anos cinquenta e sessenta do século passado. No resto da cidade não acharíamos que a venda desse direito a prisão. Na cidade, não se acredita em partes não-cidade cuja pobreza é criminalizada.
Os filhos de Ofélia foram presos. Os netos de Ofélia foram presos.
Ofélia fez parte da geração que cresceu na pobreza no fascismo. Não teve direito a educação, só a existir junto dos seus. Chama-se sobrevivência. Trabalhar desde o início da memória até ao seu termino.
A democracia garantiu que quem gritava e lutava para que Ofélia tivesse uma vida melhor deixasse de ser preso. Mas o que garantiu para os seus filhos e netos?
No bairro da Ofélia trabalhei com jovens. Ao fim das primeiras semanas de intento deixei de ver o Joel. Perguntei por ele. Tinha sido identificado na rua e como pendia um mandado de captura, foi encaminhado para um estabelecimento prisional para cumprir cinco anos de pena.
Perguntei o que tinha feito, ninguém sabia, nem ele. Deve ter recebido várias cartas da investigação criminal, do tribunal, mas no prédio onde habita as caixas de correio estão partidas. Só foi notificado uma vez, para ir à PSP em Alcântara. Não foi, teve medo do desconhecido. Joel foi acusado por ter sido identificado por uma vítima de assalto num dossier de fotografias na esquadra. O assalto foi feito de mota e o perpetuador tinha capacete.
Fiz girar a palavra para que todos os que recebam cartas e notificações viessem falar comigo. Para cada um era uma maratona. Às vezes bastava ir com eles às chamadas de inquérito da PSP para mais nada avançar. Noutras, agarrar no processo, telefonar para a ordem dos advogados, exigir um telefone tangível de um “oficioso”, agendar uma conversa, pensar numa estratégia. Nenhum dos casos deu prisão efectiva. Muitos caíram e para os outros, a articulação entre tribunal, direcção geral de reinserção social e actores do terreno foram suficientes para medidas mais produtivas de reinserção.
Para os profissionais desses itinerários esta história é banal e não surpreende a nenhum que a população das nossas prisões e centros educativos seja na sua maioria constituída por pessoas que habitem em bairros sociais ou em áreas geográficas empobrecidas. No caso da Área Metropolitana de Lisboa – devido à sua história, migrações e segregação espacial – essas situações levam ainda uma camada racial. Num debate que tive com a ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem há um mês na antena 3, esta afirmava que “O sistema prisional (português) é de facto diferenciador nos seus alvos (…) é notório uma preponderância muito grande de pessoas com fraca capacidade económica e pessoas racializadas.”.
Os seus alvos são fáceis de encontrar, No contexto urbano estão delimitados no território, muitas vezes em bairros criados pelo estado. Acontece que para muitos moradores destes bairros, e em especial para os jovens já saídos da escola, o único contacto que têm com o estado é a polícia. Conta-se às dezenas de vezes por dia que as forças polícias circulam por cada um desses territórios, quer em carros descaracterizados ou com carrinhas das intervenções especiais sem que, no entanto, haja estatísticas criminais que validem tamanha oferta. Há apenas percepções e categorizações sociais formais: nº imigrantes, abandono escolar, beneficiários de prestações sociais; que legitimam a criação de Zonas Urbanas Sensíveis para a PSP – que na prática é uma aplicação de uma lei marcial em que todos os moradores são suspeitos, ou seja: criminalizar a pobreza.
Aquilo que não se contam às dezenas nesses bairros são: espaços jovens, escolas equipadas e de qualidade, centros comunitários, sítios de acolhimento para as crianças enquanto os pais estão a trabalhar, uma habitação digna, equipamentos colectivos públicos (parque infantil, ringues desportivos, parques), transportes de qualidade, espaços e financiamento disponível para as associações locais e fóruns de diálogo entre moradores e poder público.
Os filhos e netos têm mais escolaridade que a Ofélia, mas apenas na proporção do que os tempos exigem. Ofélia era analfabeta, o filho tinha a quarta classe e o neto o sétimo ano incompleto. Todos foram e são oficialmente desocupados, ou seja, empurrados para a precaridade e informalidade económica. Após três gerações, estão todos no mesmo lugar da sociedade, aquela que não acede aos direitos universais consagrados.
Por ventura, os vinte mil euros que o estado gasta anualmente por cada cidadão encarcerado seriam melhor aplicados em dar a equidade necessária para que esses direitos universais possam ser acessados por todos e não na criminalização de um ponto de partida que não escolhemos. Deixámos de ter presos políticos mas ainda temos os presos da ausência da política pública.
Em Diário de Notícias a 6 de Janeiro de 2024
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