O FIM DA DISSIDÊNCIA I

Fica sempre a dúvida se o esbatimento é das condições analógicas de então ou da roupa de catálogo. A fotografia sinalizava o momento em que comecei a andar e até faz parecer que a luz desses tempos não era a destes. Nos retratos em que começamos a andar, assemelhamo-nos aos sonhos em que caímos de uma falésia: uma vertigem à procura de um galho.

Não estava no meu consciente que a Thatcher já era primeiro-ministra inglesa e muito provavelmente, antes de saber contar até dez, já Ronald Reagan era presidente dos EUA. Esse dueto dever ter acompanhado toda a minha infância até ter começado a andar de transportes públicos sozinho.

Foram tempos de ressaca dos trinta anos gloriosos. As actualizações nas tecnologias de informação e o alargamento da computação permitiram a expansão das operações financeiras (como os derivativos), deslocar as indústrias para países terceiros e concorrer para mão de obra mais barata, deteriorando os termos da troca das matérias-primas.

A descontinuação de empreendimentos económicos históricos: das minas à indústria pesada, as greves, o desemprego e o ataque ao estado social; não foram suficientes para travar o novo paradigma do capital.

Este neoliberalismo económico, muito bem ensaiado pelos Chicago Boys no Chile sob a cobertura da ditadura de Pinochet, consolidava-se ainda mais através de grandes blocos transnacionais, primeiro com a CEE, depois com o tratado de livre comércio Canadá/EUA.

A embriaguez total deu-se com a queda dos países do bloco comunista, o “império do mal” de Reagan. Jeffrey Sachs instalou-se nesses países. Depois de ter aplicado a sua terapia de choque na Bolívia, Argentina e Brasil; chegara a vez de – como consultor – fazer a transição de uma economia de estado para o mercado livre. Ainda guardo na memória as suas perversas descrições, de andar dias pelas ruas das cidades polacas, depois das medidas de austeridade, enquanto a inflação disparava e os bens primários eram inexistentes, à espera que o espírito empreendedor da população surgisse, e que os levasse a ir para a rua vender ovos.

Aquilo a que vulgarmente se chamou de mundo ocidental, foi dominado em década e meia por esta corrente de direita neo-liberal. Havia a excepção australiana, baseada no continuo progresso social de causas, mas com as políticas económicas da moda neoliberal: privatizações, desregulação do mercado de trabalho, reforma da segurança social, limitação do direito à greve. Estavam lançadas as bases para o que viria a ser a terceira via, corporizada em Clinton e Blair, exportada para muitos outros países.

Esta aparente fórmula vencedora de poder da esquerda, tomou o flanco da direita afastando-a do poder por algum tempo. A preparação do seu regresso passou por caminhos tenebrosos.

Se olharmos para os EUA, um primeiro regresso fez-se pela via messiânica dos neoconservadores, que no seu new american century pretendiam um papel mais activo na difusão da democracia pelo mundo (aqui leia-se, à la Iraque). Privados do poder durante a administração Obama – que manteve a filiação pelas práticas económicas neoliberais (e já agora, também as belicistas) – a resistência da direita fez-se via Tea Party, dos ávidos leitores de Ayn Rand e libertários, que teve o condão de querer afirmar-se como movimento activista de base, mimetizando os andamentos da esquerda.

Apesar de actualmente extinto, o Tea Party fundiu-se com o lastro mais alargado de direita que veio a criar a base de apoio a Trump, cooptando até algum imaginário da esquerda extraparlamentar, do 1984 de George Orwell até ao Manifesto da Sociedade Industrial e seu Futuro de Ted Kaczynski e algumas das teses antissistema agora cunhadas como conspirativas.

Perante a difusão desta nova direita, vivida actualmente pelas eleições em Portugal, mas já consagrada em França, Hungria, Russia, Brasil, Russia, Ucrânia, Holanda, Itália, etc; qual será o lugar da esquerda? É contruir-se como ponto de partida colada a esta direita, como fez anteriormente sem sucesso? (ou sem o verdadeiramente o ser, de esquerda) É manter o sistema económico e barricar-se numa superioridade moral? É possível haver esquerda sem melhoria das condições de vida das populações?

Sem dissonância não haverá futuro para a esquerda.

Em Diário de Notícias a 23 de Março de 2024

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