Pode um debate sobre o futuro aeroporto de Lisboa degenerar em algo insultuoso, xenófobo e racista? Por mais absurdo que pareça, no contexto parlamentar português dos nossos dias, a resposta é sim.
Ontem, dia 17 de Maio, André Ventura fez uma intervenção no plenário da Assembleia da República onde criticou os prazos de construção do novo aeroporto. Alegou que dez anos é muito tempo e foi buscar exemplos de prazos de construção mais curtos. Há todo um universo de novos aeroportos do Mundo, mas Ventura optou por três exemplos: Albânia, China e Turquia; a escolha não é inocente, não reconhecemos essa tendência para o Este no líder do Chega, a insinuação previa-se e não demorou: “O Aeroporto de Istambul foi construído em 5 anos, os turcos não são conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”.
O Bloco e o Livre intervieram alertando para a gravidade das declarações, mas o que ficou para memória futura foi a interpelação de Alexandra Leitão ao Presidente da Assembleia da República (PAR): “se uma determinada bancada disser que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode?”. A resposta foi: “No meu entender, pode. A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada.”.
Isto foi só o começo e Pedro Aguiar-Branco acabou de escancarar as portas ao aprofundamento de linguagem racista, xenófoba e discriminatória na Assembleia da República. André Ventura, como qualquer miúdo bully, testa os seus tutores para perceber até onde pode ir. É do mais primário, mas é parte do que temos nas nossas relações políticas.
Observei durante o dia de ontem, da esquerda à direita democrática, a todo um espanto pelas declarações anuentes do PAR, mas agora a sério, estavam à espera de outra coisa de Pedro Aguiar-Branco? Eu, sinceramente, não estava. Basta observar a cadência e consistência das declarações de elementos da AD nos últimos anos. Aparentemente, este abre olhos pode ser útil para perceber que a luta contra o racismo não se resume a afrontar a bancada do Chega, mas que é algo muito mais lato, com cúmplices em todas as esferas políticas e instituições do país.
Quanto às consequências desta nova jurisprudência para a linguagem do debate parlamentar, ela é naturalmente bastante problemática. Segundo o regimento da Assembleia da República o “orador é advertido pelo PAR quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra.”. Ainda no mês passado, Pedro Aguiar-Branco ajuizou que tratar deputados por “tu” ou “você” não dignifica a Assembleia e por isso recomendou a sua não utilização, mas ontem decidiu ajuizar que classificar determinadas etnias de “burras” ou “preguiçosas” será permitido.
Embora não seja jurista, sou a favor da liberdade de expressão absoluta. Mas em mim, isso significa respeito pela equidade no acesso a essa expressão, o que inclui o acesso à mesma mediação. Simplesmente não posso dar espaço no parlamento a uso de linguagem que cadastre e atente a determinados grupos na nossa sociedade. Lembrar que os deputados têm imunidade jurídica, e isso acresce responsabilidades pelos seus actos.
Acresce que a nossa sociedade é diversificada. Um parlamento que estereotipe comportamentos de grupos com base na etnia vai contribuir ainda mais para a sua falta de coesão.
Por fim, lembrar que os atentados racistas e discriminatórios neste país não acontecem por actos isolados, mas sim por toda uma acumulação de factores e incidentes. Se nos últimos meses já temos assistido a uma série de crimes dessa ordem, imaginem a legitimação que confere banalizar esse discurso no parlamento.
Publicado no Diário de Notícias de 18 de Maio de 2024
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