Numa terra em que nunca neva, a chuva fria doi. Era só mais uma dessas manhãs, em que os lisboetas fingem que não conhecem a chuva, o que ajuda a incomodar o dobro. Dezembro, véspera de Natal, Julia usa o braço esquerdo para agrupar e empilhar os seus bens. O prédio municipal está cercado com duas dezenas de polícias, entre municipais e de segurança pública. Aparentemente, Julia e o seu braço esquerdo são perigosos e ninguém pode entrar para aliviar o braço direito onde pousa a sua filha Ema de apenas três meses.
A outra cria de Julia de oito anos: o Pedro, só vai saber que ficou sem casa quando regressar da escola, lá para as cinco da tarde. Quanto a Julia, só vai voltar a ter direito ao seu corpo todo quando no fim daquela manhã estiver na rua, ao frio , à chuva, com a Ema no ovo, um conjunto de bens escassos, sozinha e abandonada, sem a presença de uma assistente social e das políticas que na lei a deviam proteger.
Da parte de trás de um carro na margem sul do Tejo, Jessica liga-me. Acomodou-se naquele Vokswagem Golf de serie do século passado, com o marido e o filho Cristiano de três anos, desde que a sua casa foi destruída no dia anterior. Disseram-lhe que o melhor seria não resistir ou perguntar por alternativas, porque corria o risco da CPCJ retirar-lhe o filho por não ter habitação digna. Da chamada telefónica, Jessica só queria que alguém a ouvisse como ser humano e que trabalhasse em prol de resolver a sua situaçao aflitiva, sem mais armadilhas no caminho.
Enquanto lêem este texto, a probalidade de Ana Paula estar na maternidade em trabalho de parto é grande. A sua casa precária em Loures – a úlima alternativa que arranjou depois de ser despejada de várias habitações devido ao aumento da rendas – foi destruída. A emergência social local arranjou-lhe um quarto numa pensão onde pernoita com os seus três filhos. Em final de gestação, foi avisada pelas assistente sociais que se não arranjasse uma habitação no mercado até ao parto, retirariam-lhe as crianças, incluindo a recem-nascida.
E não neva. Faz chuva e granizo. Doi, e Ana Paula desceu a avenida com as suas três filhas no dia 8 de Março e partilhou tudo no fim.
É neste ambiente social que passámos por mais um dia internacional da mulher. Vi muitas stories com presentes e flores. Muitas eram da autoria de quem cresceu como a Ema, o Pedro, Cristiano e os três filhos da Ana Paula. Compreende-se, cresceram num país onde as mães foram guerreiras para lutar por aquilo que devia ser direito garantido à partida.
Dos outros, rapazes, que celebram o dia da mulher como se fosse uma extensão do dia de são valentim, lembrar-lhes que o Dia Internacional da Mulher não é para actos de contrição, é dia de luta. Não é sobre a “tua”, é sobre a Julia, Jessica, Ana Paula e todas as outras anónimas que desconheces.
Não é sobre “família”ou “maternidade” como sugeriu o agora ex primeiro ministro Luís Montenegro. É sobre a mulher, com ou sem família, com a família que quiser, com ou sem maternidade.
O enviesamento simbólico sugerido por Luís Montenegro é um bom exemplo de como um assunto completamente racionalizado e com bases científicas, ainda assim, é sujeito a recuos constantes: um postulado definido por homens ilustres que culpam as mulheres pelas suas opções .
Não há estado que aguente a fraqueza de usar as políticas públicas tendencialmente criadas para a emancipação dos seus contituintes de modo repressivo. Nenhuma mãe deve ficar sem os filhos em consequência da crise da habitação. Qualquer programa eleitoral das eleições que se avizinham deve precaver isso.
Sobre a Ana Paula, sobre todas: AQUI
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