O CAPITAL DO ESQUECIMENTO

Emojis e gifs de abutres populam nos comentários às minhas publicações na rede X sobre o descarrilamento do Elevador da Glória. São os do costume, “sicários” corajosos da internet ao serviço de quem sabemos: de uma organização do dinheiro e de todas as formas que este pode adquirir, que subjaz todo um povo às delícias de uns poucos. Aí, os verdadeiros abutres.

Procurar consequências políticas para o que aconteceu a 3 de Setembro de 2025 em Lisboa é o mais elementar objectivo para quem está insatisfeito com o rumo dos acontecimentos. Plural, porque o descarrilamento do Elevador da Glória não se restringe a um “acidente“, mas a uma formula de organização da sociedade que urge estancar e alterar significativamente.

É evidente que essa organização societal trata de si, e uma das formas de o fazer é dizer-nos, por todas os meios, que foi algo isolado ou fatalmente incontornável, uma sistematização do esquecimento, posta em acção com diversos jeitos:

1 – O discurso do “Correu tudo bem” partilhado por políticos com responsabilidades executivas, do município ao governo central. Bombeiros, Inem, polícias e protecção civil acudiram ao local em tempo recorde e o SNS recebeu todos os sinistrados de forma operacional e efectiva. Pretende-se que o discurso sobre a capacidade de reacção dos serviços – em que todos esperamos que funcionem dessa forma – emacie a tragédia que acabou de ocorrer. A questão é que, nem assim. À mesma hora em que todas as atenções se concentravam no local do acidente, só havia um ortopedista de urgência em todos os hospitais de Lisboa. Em Santa Maria, a urgência de trauma estava mesmo encerrada. Não foi a estrutura que nos garantiu mas o voluntarismo dos médicos em terem aparecido.

2 – As cerimónias. Podia falar de vários momentos formais associados à tragédia, mas a missa convocada pelo Patriarca de Lisboa em solidariedade com as vitímas, seus familiares e demais cidadãos da cidade, é o exemplo máximo. Acho normal que o patriarcado de Lisboa convoque uma missa. Faz parte do seu posicionamento na cidade e de abraço aos fieis. Já menos normal é que as bancadas, ao invés de preenchidas por fieis anónimos em busca de alguma paz, se transformem num passeio de vaidades e cumplicidades políticas, e que nos seja vendida a sua suposta sofregidão como performance em directo em todos os canais, quase com neons onde se lê PENITÊNCIA E RECONCILIAÇÃO.

3 – O outro. O olhar para o equipamento sinistrado tem sido feito quase em exclusivo como uma atracção para turistas. Ora, nós não devemos prescindir de um equipamento da cidade só porque politicamente ele foi transformado numa fábrica de dinheiro. Já ouvi algumas revenches populares a alhearem-se do acontecimento por ter vitimado essencialmente turistas. Bem, turistas também são pessoas e povo de outros países, para além de ser um argumento falacioso porque como sabemos, uma boa parte das vitímas são pessoas que moram e trabalham em Lisboa, de nacionalidade portuguesa ou não.

4 – Despolitização. A externalização dos serviços de manutenção ou o uso de linguagem empresarial (de accionista) sobre uma tutela pública e política como a Carris, pretende criar o intervalo de distância necessário para que a responsablização saia dos nossos eleitos e fique algures perdida em cadernos de encargo e protocolos.

5 – Mentalidade Portuguesa. É outro atributo que consiste em colocar as causas do acidente num suposto desenrascanso fatalista de carácter cultural. A verdadeira causa desse “desenrascanso” é a má redistribuição de riqueza gerada pelas necessidades, neste caso, em segurança. Factores que se degradaram ainda mais desde as medidas de austeridade que se tornaram permanentes.

Podia continuar a ensaiar alíneas,mas acho que é bem entendível a mensagem que pretendo passar.

No campo das ideias e da prática, na construção desta cidade dual, não poderia haver melhor avatar que Carlos Moedas. O homem que regressou a Portugal para gerir carteiras de investimento imobiliário, com passagem na Goldman Sachs, e que rapidamente se tornou o homem de confiança da troika em Portugal é a actual cara política da terapia de choque que acontece em Lisboa.

Carlos Moedas, não tem pensamento de eleito e também sabe que os critérios dos partidos do arco do sistema para submeter alguém a um lugar de elgibilidade, não são propriamente a cultura ou a meritocracia democrática.

Não é portanto surpreendente que em toda esta tragédia, Moedas tenha-se comportado como um tecnocrata, cujo principal objectivo é defender os interesses que sempre defedeu.

Rodeou-se do seu director de campanha e dos seus peritos em comunicação e não dos eleitos da cidade (nem dos da sua lista!). Não assumiu a responsablidade que lhe é atríbuida pelo artigo 35º da Lei de Bases da Protecção Civil de comandar as operações de catástrofe, recebendo – ele sim – o Primeiro-Ministro e o Presidente da República na Câmara Municipal e não olhando para a sede de trabalho desses como um esconderijo político.

Mentiu permanentemente, usou os mortos (Jorge Coelho e André Marques) como limite da fronteira humana de responsabilidade (ilibando-se), não respondeu a perguntas, desapareceu, ofendeu, não convocou a reunião de câmara (foi convocado) e fugiu da mesma, conseguiu ler as propostas de todos os partidos da oposição antes de propor o que seja aos lisboetas, e, admirem-se: ainda se apresenta como a maior vitíma disto tudo.

O que aconteu em Lisboa a 3 de Setembro não foi um desastre natural. Não tivemos um terramoto de 8 valores na escala de Richter ou o recorde de precipitação da história numa hora. Foi o colapso de uma estrutura apenas dependente de nós: do trato, da ciência, do cuidado, do serviço.

Por isso não, o descarrilamento do Elevador da Glória não foi apenas um “acidente”, mas uma catástrofe do capitalismo reinante. Na mesma cidade onde no mesmo dia caiu parte de um prédio (desalojando os moradores) em consequência da construção de mais um empreendimento de luxo; na mesma cidade em que alugar um pequeno apartamento custa mais que o ordenado médio nacional, na mesma cidade onde as escadas rolantes não funcionam, na mesma cidade onde permanecer no espaço público está cada vez mais dependente de consumos caros, na mesma cidade em que se extiguem os espaços colectivos, na mesma cidade com o maior crescimento de rendas na europa, na mesma cidade em que os hospitais não funcionam, na mesma cidade que é a mais rica do país e a mais desigual.

Lisboa já era e continua a aprofundar o seu papel de colonato financeiro. É um local de acumulação de capital não tributado, que permite que os mais ricos enriqueçam a uma velocidade extraorinária enquanto nada se distribui e os demais possam morrer: de repente ou lentamente ao sabor da austeridade.

3 de Setembro de 2025 também é sobre o destino que dão às nossas vidas e sobre o que podemos fazer para mudá-lo.

Leave a comment